segunda-feira, 23 de julho de 2012

É muita crueldade

   - Ah, eaí, beleza?
   João passou reto, sem sequer olhar para a cara do amigo e sentou-se na cama em silêncio.
   - Chega aí, acabei de baixar um jogo, olha aí.
   João concordou de má vontade e se colocou ao lado do anfitrião.
   - Calma que tá carregando... Mas que merda esse pc - ele disse chutando o computador.
   - Ei!
   - Ei o quê?
   - Cara, você sabe quantas pessoas tão passando fome agora, neste momento, enquanto você reclama do seu computador? Você sabe quantas pessoas morreram desde que você reclamou do computador? Você sabe quantas pessoas descobriram que iriam morrer enquanto você reclamava do computador? Você sabe quantas pessoas que descobriram que iriam morrer enquanto você reclamava do computador já morreram depois de você reclamar do computador? Você já parou pra pensar em quantas criancinhas, bebês, foram dormir hoje de barriga vazia depois que você reclamou? Eu tô falando de seres humanos, criancinhas. Você não tem vergonha de ficar aí, sentado numa cadeira de couro, a uma temperatura agradável por causa do ar condicionado tomando uma garrafa de água tônica que custa mais do que algumas pessoas ganham por um dia inteiro de trabalho, reclamando do computador que custou mais de dez salários mínimos enquanto tanta desgraça acontece no mundo? Você não tem vergonha na cara?
   - Credo cara, o que aconteceu?
   Eles se encararam em silêncio por algum tempo até que João disse:
   - Ela... ela me largou - e caiu em prantos - o mundo é... é tão cruel... mas por que, por que eu, Deus?
   - Calma cara - disse o amigo dando tapinhas no ombro de João - calma, calma.
   - Sabe, eu, eu sempre fui tão bom... e agora isso acontece co-comigo? O que é que eu fiz... para merecer tanta... desgraça?

terça-feira, 17 de julho de 2012

Selo de ferro

  Eu nem acredito. Com passa rápido. Já passou, aliás. Ontem mesmo eu ainda era o garotinho que não entendia o que as pessoas queriam dizer com isso. Naquela época, o tempo me parecia sempre igual. Só demorava a passar quando algum velho se metia no meu caminho para falar aquilo. Hoje eu acho que estava certo, com a diferença de que hoje sei que somos nós que mudamos. Só não sei se para melhor ou para pior. Mas até aí, quem sabe?
  Ainda me lembro de tantas coisas; algumas tão nítidas, outras nem tanto mas todas tão distantes. Às vezes bate aquela vontade louca, aquele desespero de querer viver tudo novamente, talvez retocando uma coisa aqui e acolá, mas aí qual seria a graça? O que já passou, passou, mesmo que permaneça guardado para sempre no baú da memória. É esse acontecer uma só vez que torna a vida tão interessante e mesmo assim teimamos em reclamar. Cada dia que passa, mais certo eu fico de que estamos aqui para aprender.
  Ainda me lembro perfeitamente da época em que queria ser comediante. Lembro perfeitamente da sua cara, mãe, quando te contei isso. Ainda consigo ouvir seus gritos se fechar os olhos. O importante é que eles funcionaram e eu não virei hippie nem acabei pedindo esmola na praça da república. Apesar de vocês terem ficado bravos, acho que sabiam que era só uma besteira de adolescente. Me davam bronca mas compravam todos os cds, dvds e livros. George Carlin, Jerry Seinfeld, Russell Peters, Louis CK e Bill Hicks. O Bill veio por último, acho que eu tinha uns quinze anos e foi o que me afetou de forma mais profunda. Não só pelo seu show, pela sua incessante busca pela verdade, mas também pela morte prematura. Me lembro de passar noites em claro, pensando no quão difícil não deveria ter sido para ele, com apenas trinta e dois anos, escrever uma carta sabendo que seria a sua última. Imaginava e compartilhava a dor e a tristeza cada vez que pensava na mão trêmula e nos olhos marejados.
  Acontece que não é tão difícil assim. Porque ele sabia, assim como eu sei agora, que tudo isso é sobre família, e que só com ela se atravessa a vida e a morte. Não sei se encontrarei vocês do outro lado, mas isso não me preocupa agora. Só tenho de agradecer e lembrar de todos os momentos que passamos juntos, de cada bronca, cada abraço, cada beijo, um mais especial que o outro. Pode parecer bobeira, mas eu me lembro acima de tudo dos silêncios. Os olhares e sorriso de cumplicidade que compartilhei com cada um de vocês. Obrigado por me mostrarem que às vezes o silêncio é o melhor discurso e me desculpem se por essa carta eu não pareço ter aprendido a lição.
  Estou tranquilo e espero que vocês também estejam, pois sei que mesmo na morte permanecerei vivo. Dentro de cada um dos seus corações, assim como vocês viverão no meu, por hoje e por toda a eternidade.
  Jo, meu herói imbatível.
  Lu, minha guia incansável.
  Isa, minha cúmplice.
                                                                                                        Com amor,
                           

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A mais gostosa das idiotices

   Há, ou pelo menos deveria haver, um momento na vida de todas as pessoas em que tudo muda. A concepção de mundo, realidade, vontades e caprichos, tudo muda. E isso muda assim ó, em um piscar de olhos.
   Pronto, mudou.
   Um nome, um cheiro, uma voz é o suficiente para acelerar o coração e aguçar os sentidos. A noite deixa de ser sinônimo de escuridão para se tornar palco das mais belas conjecturas acerca do futuro e lembranças do passado. As estrelas deixam de ser mero plasma mantido agrupado pela gravidade para se tornar uma declaração silenciosa, que apesar de visível a todos, é inteligível apenas aos dois. A lua deixa de ser um satélite e se torna um espelho. Sua superfície ganha vida e suas crateras formam os olhos, o nariz, a boca e nesse momento você se estica para tocá-la, mas não se irrita quando falha. Pensa que, sob esse mesmo céu iluminado, ele(a) tentou fazer o mesmo. Talvez você até fique com um sorriso idiota no rosto quando se der conta do que está pensando, e em circunstâncias normais, se repreenderia pela idiotice, mas essas não são circunstâncias normais. O Sol continua sendo o astro rei, mas não aparece todas as manhãs por meras leis imutáveis da natureza. Ele se dá ao trabalho de aparecer todos os dias simplesmente pelo prazer de testemunhar cada riso, cada olhar, cada segredo sussurrado ao pé do ouvido. A vida, ah, essa sucessão de eventos aleatórios, o caos, a confusão...
   Tudo isso continua.
   O caos não florecerá em ordem, ainda haverão mais perguntas do que respostas e o escuro ainda trará consigo todos os seus terrores.
   Mas não importa. Porque quando você estiver com medo, perder o equilíbrio e estiver prestes a cair, uma voz surgirá na escuridão. O coração ficará mais tranquilo, e uma mão te ajudará a passar por tudo. Quando a escuridão surgir, se a voz não surgir e a mão não aparecer, basta olhar para a janela. Basta olhar para as estrelas e ler a poesia que a caneta não escreveu e o tempo não apaga. Basta olhar para a lua em toda a sua alvura e ver que ela também está solitária. E mesmo que eles pareçam sempre distantes, é Ele quem manda a luz que a faz brilhar.
   E se nada disso funcionar, basta pensar que sob aquele mesmo céu, sob aquelas mesmas estrelas, que mesmo separados por quilômetros de distância, alguém está fazendo a mesma coisa, motivado pelos mesmos sentimentos. E antes que você se dê conta, vai se ver esticando-se para tocá-la.
   E quando perceber, surgirá um sorriso idiota no rosto. O mais sincero dos sorrisos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Amor à gordinha

   O chão treme. Cada átomo do universo parece obedecer às batidas dos corações. Milhares deles. A Terra parece pronta para desfalecer. Ao fundo um coro ensandecido. Milhares de vozes em uníssono bradando aos quatro ventos uma única emoção.
   O movimento é inesperado. Nem é preciso pensar, simplesmente... acontece. Mais gritos. Algumas lágrimas.
   O momento decisivo chega. Silêncio total. O tempo parece ter parado, se demorando no seu ciclo infindável, curioso para saber o resultado. Milhares seguram a respiração, sem piscar, enquanto esperam pelo momento em que o tempo seguirá com o seu curso. Mas não agora. Silêncio. Batidas ecoam, altas como um tambor ditando o ritmo de uma marcha de guerra.
   Foi. Pessoas fecham os olhos, roem as unhas e esperam pela fração de segundo mais longa de suas vidas.
   E então o tempo volta a passar e o barulho ressurge das cinzas, ainda mais ensurdecedor. Levanto os braços e eles vão a loucura. Pessoas se abraçam, pulam e se beijam. O chão treme, como em um terremoto, e o gramado, o estádio, o mundo todo parece pronto para ruir a qualquer instante.
   E que rua. Que engula todas as pessoas e não deixe para trás nada além de ruínas.
   Ninguém se importará.
   Não durante o êxtase do gol.