Ainda lembra-se como se tivesse acontecido ontem. Durante o papo que tive com ela, seus olhos brilharam e suas pausas eram marcadas por longos suspiros de saudade, daqueles que soltamos involuntariamente durante certos devaneios ao narrar sua primeira vez.
Recitou, uma a uma, as palavras que a haviam marcado há tanto tempo, e desde então carregava no peito.
Relatou, com lágrimas nos olhos e voz carregada, a dificuldade em encontrar alguém que partilhasse de seu amor pelas complexas palavras que enfeitavam a página branca como a neve, que era muitas vezes desprezada e amassada, como se fosse algo sem importância. Um mero informativo, diriam alguns.
Mas ela não ligava para as marcas de maltrato que acompanhavam aqueles frágeis páginas. Ela acolhia-as como filhas, e ia aos poucos fazendo-as esquecer dos tempos ruins. Dentro de pouco tempo, o papel estava novo, sem qualquer sinal de mágoa. Dona Neusa têm esse efeito sobre as pessoas.
Quis mostrar-me como ler tal gênero, e assisti atentamente seu ritual.
Pegou seus óculos de leitura - aquelas letras não favoreciam em nada pessoas com olhos fracos - e sentou-se na poltrona com a luminária acesa mandando sua luz por cima do ombro. Mesmo após quarenta anos de experiência na área, todos os dias deparava-se com palavras novas, bonitas e complexas, que fluíam de seus lábios como o canto de um pássaro.
Leu com a voz doce como mel, um de seus favoritos, o Mioflex-A. Já soube aquele inteiro de cabeça, mas a idade não estava ajudando, e até mesmo os clássicos iam sumindo no baú da memória.
Ouvi palavras que jamais pensei existir, como: péptica, anamnese, dispepsia, hematócrito, pruriginosas, eritematosas e teratogênicos, apenas para citar algumas.
Você, assim como eu, provavelmente sentiu-se totalmente perdido, e não, o contexto não vai ajudá-lo a compreender aqueles significados. Enquanto estava na casa de Dona Neusa, não vi um dicionário sequer. Ela também não sabia o que significava, e não precisava. A beleza está na boca de quem lê, e a voz de Dona Neusa era extremamente bonita.
Depois de acabada a leitura, jogava o remédio fora.
Só guardava o que curava.
E partia é claro, para a próxima bula.
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