sexta-feira, 22 de junho de 2012

Tique taque

   Luíz Fernando era um cara normal. Tinha vinte e sete anos, ensino superior, uma noiva e muitas contas para pagar. A vida era dura consigo, e sua rotina se resumia a ir ao trabalho, chegar em casa, dar boa noite ao William Bonner e dormir. E era isso o que ele fazia naquela noite até agora. Sua noiva fora viajar para a casa da sogra no interior e as pilhas fictícias de papel que o aguardavam no escritório não podiam esperar. Conseguiu finalmente o fim de semana livre com o qual tanto sonhara. 
   Era um sábado e ele não fizera nada o dia inteiro. Se contentou em se sentar na varanda e abrir uma latinha de cerveja, uma após a outra. Fazia muito tempo que ele não fazia nada. E convenhamos, não fazer nada é a melhor coisa que existe para se fazer.
   O sono estava tranquilo. Em seus sonhos os homens eram alegres e as mulheres vestiam saias extremamente curtas. E talvez por isso ele acordou tão furioso quando aquele barulho pequenino, insignificante, quase inexistente o acordou. tic, tic, tic...
   Desde pequeno odiava o barulho do relógio. Aquele tic, tac, tic, tac... O pior era quando era só tic, tic, tic... Como naquela noite. Pensou ter ouvido um barulho. Não o tic, tic, mas o de uma porta rangendo lentamente ao longe e depois o silêncio. Pensou se não seria a cerveja surtindo efeito. Pensou ter ouvido uns passos e lembrou da feijoada, mas não ousou levantar para ter certeza. Luíz Fernando poderia ser um cara comum, mas seu medo era extraordinário. Ele se virou para a parede cobrindo-se com o cobertor até o pescoço sem se importar com o calor. Fechou os olhos e tentou dormir. O barulho de portas rangendo e passos ecoando pelos corredores desapareceram, mas não o tic-tic-tic.
   Suor escorria pelo seu rosto enquanto ele estava embrulhado no cobertor sentindo a raiva começar a dominá-lo. Tic, tic, tic...
   Era isso. Não aturaria mais aquele absurdo. Era o seu fim de semana livre e ele não deixaria um relógio insignificante estragá-lo. Estava prestes a se levantar quando se lembrou de que na verdade não tinha relógios analógicos em casa.
   Arregalou os olhos, mas já era tarde demais.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Contos de terror, Volume menos um.

   Ele dormia placidamente quando o barulho começou. Alguém batendo na porta, passos fazendo o assoalho ranger e o vento assobiando melancólicas melodias.
   Ele acordou com o coração acelerado, a respiração ofegante e com suor escorrendo pelo seu rosto. A porta do seu quarto estava fechada. Os barulhos cada vez mais próximos. As batidas. Os passos. O vento. Tudo soando a um só tempo.
   A luz do quarto estava apagada e ele sabia que o momento estava chegando. Com os olhos apertados, tentou discernir qualquer coisa que lhe pudesse ser útil, mas tudo o que conseguia ver era o contorno de objetos, sombras que poderiam ser qualquer coisa ou não ser nada.
   Pensou nos pais, na irmã e nos amigos de infância. Estranhamente, a lembrança de seu professor mais chato, implicante e autoritário veio à sua cabeça. Talvez isso fosse a prova de que ele sabia que iria para o inferno e o encontraria lá. Pelo menos ele também vai estar lá, pensou. Depois percebeu que na verdade isso não era uma coisa boa. Passaram imagens de sua primeira namorada, de sua primeira esposa e do seu chefe. Um pôr do Sol, um navio partindo no horizonte e bonecos falantes na TV. Uma sucessão de cenas se passava diante de seu olhos e ele as assistia indolentemente. Era como ver algo sem prestar atenção. As cenas passavam sem deixar marcas e isso o deixava cada vez mais aturdido. Será que eu não tenho coração? O dia de minha formatura, minha primeira namorada e o meu primeiro salário, será que isso não significa nada para mim? Que tipo de monstro eu sou? Quando se deu conta de seus pensamentos, tratou de cortá-los e esperar pacientemente pelo momento final.
   Ele conhecia o barulho, os passos agudos no carpete e o vento que prenunciava sua chegada. Cada vez mais alto e mais perto, o barulho foi chegando. Uma luz foi acesa e ele pôde vê-la pelo vão da porta. Estava perto demais. Não adiantava se dar ao trabalho de tentar se proteger.
   Se lembrou da janela que ficava ao lado de sua cama e correu para abri-la. Morava no terceiro andar. Caso visse que o pior estivesse prestes a acontecer, ele se jogaria. Sim, era um bom plano.
   Aproveitou a luz da lua que entrava, fraca e sorrateira pela janela e lançou um último olhar para o céu estrelado. Nunca o tinha visto tão grande, tão bonito e colorido. Provavelmente apenas o efeito da sua chegada. Deixou para lá suas indagações filosóficas sobre a iminência de morte e seus efeitos sobre os sentimentos humanos e deu uma última inspirada, sugando o máximo que podia do ar gélido da noite.
   Era chegada a hora. Dois pontos de sombra se projetavam na luz que invadia a soleira da porta. Viu a maçaneta começar a se virar, lentamente, exatamente igual aos filmes.
   Abriu bem os olhos e se preparou para o pior. A porta se abriu, a luz invadiu o quarto e ele viu.
   Seu pior pesadelo. Em vão foram todas as suas expectativas de escapar. Agora não havia mais tempo.
 - Carlos Augusto, quantas vezes eu já não te disse? Olha só esse banheiro, encharcado. Será que você não sabe se secar no box? E as roupas jogadas? Compramos o cesto para quê? Olha, sinceramente eu não sei como eu te aguento hein.
   Eu também não, pensou ele enquanto aproveitava o fato de que sua esposa estava se trocando no banheiro para se dirigir pesarosamente para a janela. Ficou em pé na cama e pensou em deixar um bilhete para sua mãe. Pegou uma caneta na gaveta e ia começar a escrever quando os passos voltaram a ecoar pelo quarto.
   Não teve escolha. Deixou tudo como estava e correu até a janela.
   A queda foi mais rápida do que ele imaginara e logo estava no chão. Não sentia dores. Tudo o que sentia era alívio.
   Sem nunca mais precisar sair no meio do happy hour com os amigos, sem precisar fazer mil e uma acrobacias para jogar uma simples pelada com a galera ou fazer contorcionismos para enxergar aquela maravilha que Deus criou passando de saia, despreocupada. Tudo isso era coisa do passado. Era finalmente um homem livre.
   Gozava da paz dos mortos quando começou a ouvir os passos infernais. E aquela voz esganiçada que o fazia querer se jogar de uma janela.
  Lembrou-se então de, na próxima vez, tentar de uma mais alta.
  Bem mais alta.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Tempo, taime e время

   É o seguinte: vocês vivem me chamando de ingrato, dizem que eu não volto e que eu não espero por vocês. Em primeiro lugar, eu gostaria de carinhosamente chamá-los de idiota. Qual a graça de alguém que passa sempre, e depois ainda por cima volta? Se eu sou tão precioso e valioso para você é justamente pelo fato de eu não voltar. Eu passo e já era. Além disso, você não tem moral alguma para me julgar. Estou nesse emprego há mais de 4 bilhões de anos e acho que já me familiarizei com a mecânica do negócio, coisa que você, em seus oitenta, noventa anos, jamais conhecerá. Então aqui vai uma dica de quem já viu muita coisa: me aproveite. Você mesmo vive dizendo que eu só passo uma vez, que eu não volto. Então me aproveite, oras. Quando eu passar, me abrace, dance comigo e simplesmente aproveite. E quando eu já estiver longe, não me desperdice pensando no que você poderia ter feito. Faça. Eu só passo uma vez mas estou sempre passando. Se você se arrependeu de algo que fez ou deixou de fazer, aproveite o agora para que não tenha de se arrepender de novo no futuro.
   E por favor, não me chame de ingrato. Ingrato é você que não aproveita o maior presente que a vida pode te dar, que modéstia à parte, sou eu mesmo. Pare de me culpar por você ser um incompetente, por você ter medo, por não ser feliz. Aproveite que eu estou sempre passando. Agora mesmo, saia daí e me pegue pelo braço. Se você vier comigo, tenho certeza que posso te mostrar coisas e lugares que você jamais imaginou existirem. Tudo o que você tem que fazer é vir comigo. Sem medo e sem olhar para trás.
   Feche os olhos e aproveite.
   Porque só acontece uma vez, e depois disso eu vou embora.
   Fui.
   E não volto mais.